Para Compreender o Guru
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Georg Feuerstein |
PREÂMBULO
A função tradicional do guru, ou mestre espiritual, não é bem compreendida no Ocidente, nem mesmo pelos que professam praticar Yoga ou alguma outra tradição oriental baseada no discipulado. Vou tentar, a seguir, lançar alguma luz sobre essa questão, valendo-me de teses tradicionais encontradas na rica literatura sânscrita do Yoga hindu, budista e jainista. Muitas de minhas observações, senão a maioria, se aplicam também ao diretor espiritual cristão, ao rabbi judeu e ao sheik muçulmano.
Quando consideramos a figura do guru, inevitavelmente o vemos de fora. Podemos fazê-lo através dos olhos de um discípulo ou dos de um observador imparcial. Neste último caso, a pergunta que se impõe é a seguinte: Até que ponto somos realmente imparciais, ou, num nível bem mais fundamental, até que ponto podemos sê-lo? Quais as lentes culturais e pessoais (psicológicas) que colorem a nossa visão? Vamos declarar o que todos já sabem: as pessoas convencionais sempre tiveram problemas com mestres espirituais. A desconsideração ou mesmo a perseguição dos profetas judeus e dos místicos cristãos são bem conhecidas dos historiadores. Mohammed, o fundador do Islamismo, foi maltratado pelo seu próprio povo. O mesmo aconteceu com Jesus de Nazaré e com Baha'ullah, criador da fé Baha'i. Gautama, o Buda, sobreviveu a uma trama que visava ao seu assassinato, coordenada por seu próprio primo. Vardhamana Mahâvira, fundador do Jainismo e contemporâneo mais velho do Buda, foi maltratado em sua juventude. Sócrates, antigo guru europeu, foi forçado a beber uma taça de veneno, sob a alegação de que sua sabedoria filosófica corrompia a juventude e, assim, minava os próprios fundamentos da sociedade ateniense.
O GURU COMO INICIADOR O Yoga é uma tradição iniciática, o que significa que gira em torno da comunicação de um conhecimento esotérico ou espiritual de um mestre qualificado para um discípulo iniciado. O conhecimento assim transmitido não é simplesmente de natureza intelectual, mas tem a qualidade especial da sabedoria libertadora ou iluminadora (sânscrito: vidyâ ou prajnâ).
Por meio da iniciação (sânscrito: dikshâ), o aspirante transforma-se em discípulo. Uma das principais funções do guru é a de servir como veículo desse processo. Na qualidade de iniciador, o guru assume voluntariamente a tremenda responsabilidade de ajudar o discípulo a nascer para a dimensão espiritual. Por isso, os textos sânscritos o comparam a uma mãe e a um pai. O guru, como os pais, cria um profundo laço espiritual com o iniciado, laço esse que, segundo se diz, sobrevive à morte de ambos.
A iniciação ocorre em vários níveis e por diversos meios. Na maioria dos casos, consiste num ritual formal no qual o guru transmite uma porção do seu poder espiritual (shakti) desperto por intermédio de um mantra sussurrado no ouvido esquerdo do discípulo. Os grandes adeptos, todavia, são capazes de iniciar por um mero toque, um olhar, ou mesmo pelo simples ato de visualizar o discípulo. Sri Ramakrishna, grande mestre do século XIX, colocou seu pé sobre o peito de Swami Vivekananda e imediatamente fez seu jovem discípulo mergulhar num profundo estado de êxtase inconsciente (nirvikalpa-samâdhi).
O GURU COMO TRANSMISSOR Segundo o Yoga indiano, o guru não é um mestre que simplesmente instrui ou comunica informações, como faz o preceptor (âcârya). Antes, o guru transmite a sabedoria e, por sua própria natureza, revela - neste ou naquele grau - a Realidade espiritual. Se o guru é plenamente iluminado ou liberto, cada uma de suas palavras e gestos, e mesmo sua simples presença, expressam e manifestam o Espírito. É então um legítimo farol da Realidade. Nesse caso, a transmissão é espontânea e contínua. Como o Sol, ao qual osad-guru ou Mestre do Real é freqüentemente comparado, ele transmite constantemente a "energia" libertadora do Ser transcendente.
No Yoga, no caso de adeptos que ainda não atingiram o grau supremo, a transmissão é em grande medida, mas não exclusivamente, baseada na vontade e no esforço do mestre. Muitas escolas fazem entrar também na equação um elemento de graça divina (prasâda), para a qual o mestre desempenha o papel de veículo temporal.
Assim, o mestre tradicional desempenha um papel crucial na vida do discípulo. Como dá a entender a própria palavra sânscrita guru (que significa literalmente "pesado"), ele é em verdade um "peso pesado" em matéria de espiritualidade.
O GURU COMO GUIA Além de desencadear e constantemente revigorar o processo espiritual no discípulo, o guru também serve como guia ao longo do caminho. Isso ocorre principalmente por meio da instrução verbal, mas também pelo fato de ele ser um exemplo vivo de alguém que trilha essa via. Como o caminho da libertação comporta muitos obstáculos formidáveis, é evidente que o discípulo precisa de orientação. Os ensinamentos escritos, que são a herança preciosa de toda uma linhagem de adeptos, são um poderoso farol a iluminar a estrada. Porém, tipicamente, eles precisam ser explicados, precisam de um comentário oral que faça ressaltar o seu significado mais profundo. Em virtude da transmissão oral recebida do seu próprio mestre ou mestres e também à luz da sua própria experiência e realização, o guru é capaz de fazer com que os textos ganhem vida para o discípulo. Trata-se de um dom de valor inestimável.
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O GURU COMO ILUMINADOR A tradição explica o termo guru decompondo-o nas sílabas gu e ru; a primeira significa as trevas, e a segunda, a eliminação das mesmas trevas. Assim, o guru é aquele que dissipa a escuridão espiritual, ou seja, aquele que devolve a visão aos que estão cegos para a realidade de sua verdadeira natureza, o Espírito. Se compararmos o ego a um buraco negro do qual nenhuma luz pode sair, o guru será semelhante ao sol radiante: um ser eternamente luminoso que projeta sua luz sobre todos os cantos escuros da mente e do caráter do discípulo.
Essa função iluminadora depende do grau de realização do próprio guru. Segundo nos diz a tradição, se a iluminação do guru for meramente nominal, igualmente nominal será a sua capacidade de iluminar os outros. Por isso, cabe ao aspirante a discípulo o dever de examinar o mestre a fundo antes de se entregar ao discipulado.
A NATUREZA NÃO CONVENCIONAL DO GURU Os mestres espirituais, por sua própria natureza, nadam contra a corrente dos valores e atividades convencionais. Não se interessam pela aquisição e o acúmulo de bens materiais, nem pela concorrência no mercado, nem por agradar os egos. Não se interessam nem mesmo pelos aspectos exteriores da moral. Tipicamente, sua mensagem é uma mensagem radical: pedem que vivamos com consciência, examinemos nossas motivações, transcendamos nossas paixões egóicas, superemos nossa cegueira intelectual, vivamos em paz com nossos semelhantes e, por fim, realizemos o âmago profundo da natureza humana, que é o próprio Espírito. Para os que decidiram dedicar seu tempo e sua energia à vida convencional, essa mensagem é revolucionária, subversiva e profundamente perturbadora.
O DISCIPULADO Para se beneficiar da transmissão de sabedoria libertadora do guru, é preciso estabelecer com ele o intenso relacionamento de transformação que se chama discipulado. Isso envolve um compromisso profundo com a autotransformação, a submissão a uma disciplina pela qual a mente é levada a sair dos seus hábitos convencionais e, por fim, uma consideração amorosa pelo guru, que não deve ser visto como um indivíduo, mas essencialmente como unia função cósmica. Essa função tem por finalidade eliminar por completo a ilusão do discipulado.
Assim, o processo espiritual que ocorre entre o guru e o discípulo tem uma natureza altamente paradoxal: para nos abrirmos à transmissão do guru e deixarmos que ela opere em nós o milagre da transformação, temos de assumir o papel do discípulo e, assim, considerar o guru como algo exterior a nós. Por outro lado, a transmissão do guru nasce do próprio Espírito, que não é separado de nós, uma vez que é a nossa própria Identidade Suprema. Esse paradoxo está presente em toda a caminhada espiritual. Segundo o Yoga, o motivo disso é que, embora sejamos intrinsecamente livres, não percebemos isso atualmente em todos os momentos. Pelo contrário, consideramo-nos condicionados por fatores limitantes de toda espécie. Essa visão nos transforma em buscadores. A busca só termina quando vivemos no Espírito,sendo o Espírito, plenamente e em todos os instantes. O Espírito é verdadeiramente um todo indivisível, ao passo que o chamado indivíduo é na realidade um ser fragmentado, criado pela ilusão do ego.
O guru é o supremo instrumento da dissolução do ego. Embora tenha uma imensa simpatia pelo discípulo que ainda se concebe como uma ilha finita - ilusão que acarreta um infindável sofrimento (duhkha) -, o guru, com toda constância e paciência, busca fazer com que o discípulo saia dele mesmo e penetre no Si Mesmo supra-individual e universal. Nessa tarefa, o guru toma por diretrizes a sabedoria (prajnâ) e a compaixão (karunâ), capacidades supra-individuais que não se orientam para a personalidade humana finita, mas para o Espírito.
A AUTORIDADE DO GURU Essas duas capacidades, que se vivificam no guru em virtude da sua realização espiritual, dão-lhe a autoridade necessária para a sua obra amorosa de transmissão da Realidade. Se o guru fosse somente compassivo, não seria capaz de guiar habilmente o discípulo para fora do labirinto da ilusão. Isso porque o discípulo inevitavelmente entenderia a compaixão do guru como um amor por ele, discípulo, tal como ele é neste momento. Entretanto, o amor do guru se dirige para o discípulo em sua verdadeira natureza - O Si Mesmo (âtman, purusha), a Natureza Búdica, atualmente obscurecida por concepções errôneas de todo tipo. Por outro lado, se o guru fosse somente sábio e não tivesse compaixão, provavelmente o discípulo seria esmagado pela exigência de autotransformação. Enquanto o mestre ou instrutor não é plenamente realizado, sempre é possível que sua transmissão seja ainda desequilibrada quanto a esses dois aspectos. Pelo menos alguns dos problemas que ocorrem entre os instrutores e discípulos contemporâneos podem ser explicados por uma insuficiente integração da sabedoria e da compaixão por parte do instrutor. Os discípulos, por sua própria natureza, estão sujeitos a erros de concepção, projeções, ilusões e fantasias que impedem ou atrasam o estabelecimento de uma relação construtiva com o guru. Por isso, o guru é o principal responsável por proporcionar ao discípulo uma via transitável na disciplina da auto-transcendência.
A DESCOBERTA DO GURU INTERIOR O discípulo tem de compreender que no fim terá de transcender o guru externo e descobrir o guru como um princípio ou função espiritual dentro de si. Na pressa de chegar à iluminação, os discípulos ocidentais tendem a descartar prematuramente o guru externo, expondo-se assim ao risco de acumular ilusão sobre ilusão. Prontamente, então, afirmam que são eles mesmos seus próprios gurus. Entretanto, antes da realização suprema, o único guru interior acessível ao indivíduo médio é o ego. Como o Yoga postula que é o ego a própria causa da não-iluminação, a orientação do ego não poderá jamais conduzir à realização. O ego como guru, longe de dissipar as trevas espirituais, só leva o discípulo a mergulhar ainda mais fundo na ignorância, na confusão e, em última analise, no desespero. Em suma, até que o discípulo esteja maduro o suficiente para descobrir dentro de si o princípio que se chama guru e segui-lo adequadamente, deve sem dúvida alguma praticar oguru - yoga em relação a um instrutor externo.
* Mais um dado sobre as qualidades complementares do verdadeiro mestre: no Sufismo ou esoterismo islâmico, que o autor chamaria talvez de Yoga muçulmano, diz-se que o sheik ou mestre espiritual tem de ter combinado perfeitamente em si as qualidades de "atração" (jadhb) pela Graça divina e “esforço” (jahd) próprio a fim de ser capaz de guiar o discípulo por todos os estágios do caminho. (N.T.)
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